Vale Tudo no Direito das famílias e das sucessões? Quando a ficção contrasta com a realidade jurídica

A teledramaturgia brasileira, desde seus primórdios, firmou-se como um dos mais autênticos produtos da cultura de massa, possuindo uma capacidade ímpar de moldar o imaginário coletivo e de funcionar como um espelho da sociedade, ainda que por vezes de forma distorcida.  

Sucesso de audiência, o remake da novela Vale Tudo, originalmente transmitida em 1988, entra em sua reta final. Coincidindo com o ano em que foi promulgada a Constituição da República, conhecida como a carta cidadã, Vale Tudo trouxe ao ar diversos dilemas éticos e sociais acerca, dentre outros temas, do respeito às leis no Brasil. Em sua nova edição, tais dilemas foram devidamente atualizados para o século XXI, mas o pano de fundo seguiu o mesmo.  

Todavia, de maneira quase que metalinguística, quando o assunto em voga circunda a área do Direito das famílias e sucessões, o enredo da novela parece não se atentar à legislação brasileira vigente. É sabido que, de maneira geral, uma obra ficcional não tem obrigação de seguir à risca os códigos e leis que vigoram no país. No entanto, diante da comoção nacional em torno da obra televisiva, cumpre trazer considerações acerca de algumas cenas que abordaram pontos específicos em tais ramos do Direito e que contrastaram diretamente com o ordenamento jurídico brasileiro.

O casamento de Leonardo e Ana Clara: uma análise sob a ótica dos defeitos no negócio jurídico

O casamento entre Leonardo (Guilherme Magon) e Ana Clara (Samantha Jones) na releitura de 2025, levantou certo debate nas redes sociais sobre sua validade jurídica. A trama, marcada por pressões externas, conflitos familiares e supostos interesses financeiros ocultos, sugere que o matrimônio poderia ser anulado na vida real. Todavia, os vícios jurídicos para tal casamento vão muito além disso.  

Em primeiro lugar, cumpre destacar que o personagem Leonardo é tido como morto na trama após um grave acidente. Nesse sentido, certamente foi emitida certidão de óbito, tendo, como consequência, o cancelamento de seu CPF.  

O casamento exige, como pressuposto de existência, dois nubentes vivos. Isso decorre diretamente da ideia de que a personalidade civil (art. 1º do Código Civil) termina com a morte, e só pessoas com personalidade podem praticar atos civis, como se casar.

Do ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro, enquanto houver registro oficial de óbito, o indivíduo é considerado morto para todos os efeitos legais o que o impede de exercer atos da vida civil, como o casamento. Nos termos do artigo 1.521 do Código Civil, apenas pessoas civilmente capazes podem contrair matrimônio, sendo, portanto, vedado o casamento de alguém que figure como falecido nos registros públicos. Logo, o casamento sequer existiria.  

Ultrapassado esse ponto, cumpre analisar a situação fictícia do casamento de Leonardo e Ana Clara sob a ótica da anulação do casamento por vício de consentimento.  

O Código Civil brasileiro, em seus artigos 1.548 a 1.564, estabelece as condições para que um casamento seja considerado válido. Esses requisitos incluem a capacidade civil dos noivos, o consentimento livre e a ausência de impedimentos legais. Nesse sentido, a possibilidade de anulação quando o casamento é celebrado sob coação moral irresistível ou por erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge encontra respaldo expresso na legislação.

Na trama televisiva, Leonardo não tem sequer condições de exprimir a sua vontade, visto que não consegue falar nem se mexer. Dessa forma, mais do que nítido que tal casamento padece de vício de vontade, podendo facilmente ser anulado judicialmente.  

Por fim, ao se analisar o casamento sob a ótica formal, a codificação civil, em seu artigo 1534, traz a previsão de que a solenidade deverá ser realizada na sede do cartório, com toda publicidade, a portas abertas, presentes pelo menos duas testemunhas. Considerando que poucas pessoas sabem do fato de que Leonardo ainda está vivo, o casamento entre ele e Ana Clara ocorreu em casa, às escondidas e sem presença de testemunhas. Logo, além dos vícios já apontados, tal casamento também poderia ser anulado por não respeitar as formalidades legais.  

A renúncia da herança por Afonso Roitman: impossibilidade jurídica de se renunciar uma herança de pessoa viva

No ordenamento jurídico brasileiro, a herança é considerada uma universalidade de bens que apenas se constitui com a morte do titular do patrimônio, conforme dispõe o artigo 1.784 do Código Civil. Até que ocorra o falecimento, não há herança juridicamente existente, mas apenas uma expectativa de direito por parte dos possíveis herdeiros. Assim, qualquer manifestação de vontade que antecipe disposições sucessórias, como a renúncia à herança de pessoa viva, carece de eficácia jurídica, uma vez que incide sobre um objeto inexistente no mundo do direito.

A tentativa de renúncia antecipada à herança, como exemplificado na conduta de Afonso Roitman (Humberto Carrão), que declara abrir mão da herança de sua mãe Odete Roitman (Deborah Bloch) ainda em vida, encontra impedimento legal expresso. Tal conduta configura uma afronta ao artigo 426 do Código Civil, que proíbe os chamados pactos sucessórios que disponham sobre herança de pessoa viva. Mesmo que revestida de formalidade, a renúncia prematura é considerada nula de pleno direito, por se tratar de ato jurídico praticado com objeto inexistente.

Dessa forma, apenas com a abertura da sucessão, ocorrida pelo falecimento do autor da herança, é que se transmite o patrimônio aos herdeiros legítimos ou testamentários, momento a partir do qual se admite a renúncia. Antes disso, qualquer declaração de renúncia representa mera manifestação de vontade desprovida de efeitos jurídicos, não sendo oponível nem à pessoa viva nem aos demais sucessores. O caso em análise evidencia, portanto, a importância de se respeitar os limites temporais e legais da sucessão no Direito Civil, sob pena de nulidade dos atos que os desconsiderem.

Do pacto antenupcial celebrado por Afonso Roitman e Fátima Aciolli: a autonomia da vontade condicionada à lei

No pacto antenupcial celebrado entre Afonso Roitman e Fátima Aciolli (Bella Campos), constavam cláusulas que condicionavam a perda de direitos patrimoniais da esposa em caso de traição. Essa situação traz à tona uma importante análise jurídica sobre os limites da autonomia da vontade dos cônjuges no âmbito do Direito de Família, especialmente quanto à validade e à compatibilidade dessa disposição com o ordenamento jurídico brasileiro.

O pacto antenupcial é um instrumento legítimo previsto no Código Civil brasileiro, que permite aos noivos estabelecerem, antes do casamento, regras relativas ao regime de bens e outras disposições patrimoniais. Essa manifestação da autonomia da vontade dos cônjuges é fundamental para adaptar a vida conjugal às particularidades de cada casal. No entanto, essa liberdade não é absoluta, encontrando limites impostos na análise sistemática do ordenamento jurídico.  

Cláusulas que estabelecem sanções patrimoniais por condutas pessoais, como a traição, adentram no âmbito de restrições ilegítimas à autonomia e à proteção legal dos cônjuges. Por isso, essas disposições são tidas como nulas e sem efeito, garantindo que o regime jurídico do casamento preserve direitos mínimos independentemente do comportamento individual das partes.

Conclusão

Não há dúvida de que Vale Tudo ocupa lugar de destaque na história da teledramaturgia brasileira, não apenas pelo enredo envolvente, mas pela ousadia de tocar em feridas sociais que seguem, décadas depois, surpreendentemente atuais. A novela cumpre, com louvor, seu papel de entreter, provocar e fazer pensar. No entanto, quando se trata de temas jurídicos, especialmente tão sensíveis quanto os que envolvem o Direito das Famílias e das Sucessões, o distanciamento exagerado da realidade legal pode se mostrar um problema.

É claro que não se espera que roteiristas se tornem doutrinadores ou que novelas virem manuais jurídicos. Ainda assim, quando determinadas tramas lidam com situações que envolvem a validade de um casamento, a existência de herança ou os efeitos de um pacto antenupcial, vale lembrar que o público não raro toma a ficção como verdade, o que pode ser perigoso para a compreensão coletiva do que é ou não permitido pela lei.

No fim das contas, a ficção tem liberdade para criar, provocar e imaginar cenários que fogem das amarras da realidade, o que faz parte de sua força narrativa e de seu valor artístico. Contudo, quando essas histórias tocam em temas jurídicos relevantes — como casamento, sucessão e pactos patrimoniais —, é importante que o público tenha consciência de que os caminhos da dramaturgia nem sempre coincidem com os trilhos do Direito. Afinal, apesar da ampliação da valorização da vontade individual nos últimos tempos, no Direito, ainda não se vale tudo.  

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Autor(es):
David Igor Rehfeld
Publicado em 09/09/2025 no LeMonde Diplomatique Brasil