Entre a manutenção e a dissolução de vínculos: um embate entre o Inconsciente e o Consciente

Cena rotineira no escritório do advogado familiarista: processos de divórcio e partilha que se alongam por anos – por vezes, décadas –, sustentando discussões acerca de desavenças triviais, tais como “quem ficará com o conjunto de taças de vinho?”. Um olhar psicanalítico logo percebe: definitivamente, não se trata das taças. O objeto em disputa é apenas a superfície visível de um conflito que se enraíza em camadas mais profundas do aparelho psíquico. Afinal, pode um conjunto de taças justificar anos de litígio? A resposta aponta para uma contradição apenas aparente: enquanto houver discussão, há vínculo.

A pergunta metapsicológica que daí se desdobra é: se o sujeito deseja o divórcio – que, juridicamente, representa a dissolução formal do vínculo conjugal – por que insiste, inconscientemente, na manutenção desse vínculo através da repetição conflitiva? A psicanálise freudiana oferece uma via de compreensão ao articular o fenômeno à dinâmica entre os sistemas Inconsciente e Pré-consciente/Consciente, tal como formulados em O Inconsciente (1915) e O Recalque (1915).

Freud nos mostra que o Inconsciente não é um simples depósito de conteúdos esquecidos, mas um sistema dotado de leis próprias, que opera fora da lógica temporal e racional do consciente. No Inconsciente, as representações recalcadas persistem como forças atuantes, buscando expressão simbólica (Freud, 1915). Assim, o prolongamento de um processo de divórcio pode ser lido como uma formação de compromisso entre a vontade de separação – reconhecido no plano consciente – e o investimento libidinal ainda fixado no objeto amoroso, que o sujeito não consegue abandonar sem resistência.

Em O Recalque (1915), Freud descreve justamente esse mecanismo de defesa que funda o Inconsciente: conteúdos demasiadamente dolorosos, que impediriam a manutenção “sadia” do Eu são recalcados, isto é, excluídos da consciência. O recalque não os elimina, apenas impede que aquela representação dolorosa venha à consciência. O afeto, no entanto, por detrás daquela representação imagética, permanece ali, em busca de alguma nova representação com a qual ele possa se vincular. Assim, o conflito jurídico prolongado, travestido de disputa material, pode ser compreendido como a simbolização daquele afeto cuja representação fora outrora recalcada.  

A aparente irracionalidade de se prender a “taças de vinho” torna-se, nesse sentido, um sintoma: uma formação substitutiva que mantém viva, no campo da realidade externa, a cena de um vínculo interno ainda não desfeito. Nesse sentido, a formação do sintoma é a soma de um desejo Inconsciente (manutenção do vínculo) com uma parcela de consciência (as situações concretas que originaram o desfazimento).  

O litígio, portanto, funciona como cenário de repetição – uma tentativa inconsciente de sustentar a ligação com o outro, mesmo que sob a forma de conflito. Como afirma Freud, o Inconsciente é regido pelo princípio do prazer, não pela lógica da realidade. Dessa maneira, não há racionalização.  

No funcionamento do Inconsciente não há espaço para o pensamento lógico. Questionamentos como: será que faz sentido a perpetuação desse processo judicial? Será que é economicamente e afetivamente proveitoso? A resposta para eles, provavelmente apontará para uma negativa. Todavia, algum fator que ainda não sabe (ou que não se consegue admitir para si mesmo) contrariará essas respostas e insistirá na continuidade da briga judicial. É o Inconsciente se mostrando.  

No Inconsciente, não há incompatibilidade entre amar e odiar o mesmo objeto. Ele desconhece a contradição, a negação e o tempo; nele coexistem simultaneamente impulsos e representações opostas, sem que uma anule a outra. Assim, o amor e o ódio dirigidos ao parceiro não se excluem – antes, se entrelaçam, compondo a ambivalência própria dos vínculos afetivos. Essa ausência de contradição explica por que o sujeito pode, inconscientemente, manter o investimento libidinal no objeto mesmo quando conscientemente deseja afastar-se dele.

A dificuldade em romper um litígio interminável também pode ser compreendida à luz do que Freud descreve em Luto e Melancolia (1917). Para que um vínculo amoroso se encerre de fato, não basta que ele seja dissolvido juridicamente: é necessário que o Eu realize o trabalho de luto, isto é, o progressivo desinvestimento libidinal do objeto perdido. Enquanto esse processo não se completa, a libido permanece fixada ao objeto, que continua “psiquicamente vivo” para o sujeito, ainda que aparentemente morto como relação. Quando o desinvestimento não ocorre, a agressividade pode transformar-se na via privilegiada de manutenção do laço: atacar o outro passa a ser uma maneira de não deixá-lo ir preservando paradoxalmente o investimento amoroso sob a forma de ódio. Assim, a repetição conflitiva no processo judicial aparece como tentativa inconsciente de evitar o trabalho de desligamento, mantendo o parceiro ocupado na trama psíquica do sujeito. O litígio torna-se, portanto, uma forma de negar simbolicamente a perda, substituindo a elaboração do luto por uma insistência agressiva que conserva o vínculo no registro pulsional.

Já o surgimento da dúvida, da hesitação quanto à manutenção ou à dissolução da relação, é um fenômeno próprio do sistema Pré-Consciente/Consciente (Pcs/Cs). É apenas nesse nível que entram em cena as instâncias mediadoras – o juízo, a moral, a ética, a cultura – que exigem do sujeito uma escolha coerente e consistente. Enquanto o conflito permanece no Inconsciente, ele está fora do campo da norma e da racionalidade: o sujeito não “decide” amar ou odiar, apenas repete o conflito pulsional que o habita. A dúvida, portanto, indica que o conteúdo recalcado começa a emergir à consciência, tensionando o sujeito entre o desejo inconsciente e as exigências da realidade.

Justamente por conta dessa divisão e da complexidade do aparelho psíquico humano, dual e irracional, é que nenhum juiz dará conta de efetivamente “curar” as feridas advindas de uma separação. Sua decisão será meramente jurídica e pragmática. Nesse sentido, destaca a ilustre autora, advogada e ex-desembargadora, Maria Berenice Dias:

“A sentença raramente produz o efeito apaziguador desejado, principalmente nos processos que envolvem vínculos afetivos desfeitos. A resposta judicial nunca corresponde aos anseios de quem busca resguardar prejuízos emocionais pelo fim do sonho do amor eterno pelo judiciário e não apenas reparações patrimoniais ou compensações de ordem econômica. Independentemente do término do processo judicial, subsiste o sentimento de impotência dos integrantes do litígio familiar (…). (Manual de Direito das Famílias. 14 edição. Editora JusPodium. 2021. p.96).

Nesse sentido, a tarefa de tornar a infelicidade patológica pelo fim do relacionamento amoroso em uma infelicidade ordinária e natural pelo desfazimento do vínculo ficará restrita aos consultórios de psicanálise em que, por meio da troca transferencial entre paciente e analista, se buscará o entendimento maior acerca da real representação por detrás de tamanho sofrimento, trazendo-a a consciência por meio da elaboração.

Em última análise, o prolongamento do litígio familiar revela que a dissolução jurídica do vínculo não coincide com a sua dissolução psíquica. Enquanto o sujeito não realiza o trabalho inconsciente de desinvestir o objeto perdido, o conflito permanece como via de manutenção do laço, mesmo sob a forma de hostilidade. Assim, o processo judicial funciona como cenário substitutivo para a cena interna ainda não elaborada, razão pela qual nenhuma sentença é capaz de apaziguar o sofrimento que nela se encena. Somente no espaço analítico, pela via da transferência, pode emergir aquilo que insiste em se repetir, permitindo ao sujeito transformar a dor do rompimento em experiência simbolizável e finalmente passível de elaboração.

Bibliografia:

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.

FREUD, Sigmund. “O Inconsciente” (1915)

FREUD, Sigmund. “O recalque” (1915)

FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia” (1917)

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Autor(es):
David Igor Rehfeld
08/12/2025 no LeMonde Diplomatique Brasil